30 de novembro de 2014

Sussurros no escuro



Corria feito a luz em seu percurso, como se quisesse alcançar um diamante fora do sistema solar. Seu sonho sempre fora voar, mas nesse momento, por mais que parecesse que estava em voo iminente, sua expressão não denunciava felicidade. Era angústia o que sentia, era medo. As pernas de Ivone já não aguentavam; então ela parou. Descansou por um instante, entretanto, sabia que atrás daquelas paredes enormes, seu maior inimigo repousava, esperando qualquer momento de fraqueza.

Havia vozes que ela podia escutar com clareza. Eram orientações. Ordenavam que ela voltasse pra casa, que colocasse uma roupa decente. Umas escancaravam seu ódio com gritos, chamando-a de depravada, mandando que se desse ao respeito, que se valorizasse. Seu corpo era apedrejado, sua força de vontade não adiantava. 

E o pior de todas as manifestações que surdavam a garota eram os sussurros. Os sussurros podem parecer inofensivos pela magnitude do barulho. Conseguiam, no entanto, ser mais perturbadores que qualquer grito, porque ela sabia que eles vinham de pessoas que diziam a apoiar, que se diziam aliadas. E bem se via que não eram, pois a raiva tomava conta daquelas vozes covardes.

Depois de uma longa reflexão, retornou à luta. Dessa vez, apesar do medo continuar fazendo parte de sua jornada, o sentimento predominante era a coragem, a vontade de quebrar todas aquelas paredes e tudo o que havia por trás. Não é disso, afinal, que se trata a coragem? Não a falta do medo, mas sim passar por cima de tudo o que o causava. E então, a cada passo que dava, menos ouvia as vozes. 

Essa história não é a história de uma mulher; é a história de todas as mulheres. Mulheres que batalham todos os dias pela sua integridade, pelo direito de serem donas de si próprias. São as várias Ivones espalhadas pelo mundo, esperando que o dia de amanhã seja melhor, mais justo.

A sociedade contemporanea insiste em dizer que o machismo não existe. Mas se o machismo não existe, como é que pode ainda hoje uma mulher ganhar muito menos que um homem exercendo o mesmo trabalho, quiçá ainda melhor? Se o machismo não existe, eu me pergunto o porque de homens voltarem tranquilamente do trabalho para casa e as mulheres precisarem rezar todos os dias para que consigam não ter seu corpo invadido no caminho de volta. E ainda assim, com toda a proteção que pedem, o abuso acontece. Todos os dias. Com olhos ou palavras. Todos os dias.

Muitos persistem no argumento de que a governante do Brasil é uma mulher. Ter uma mulher na presidencia é absolutamente empoderador, mas não significa uma anulação da cultura patriarcal em que o mundo se baseia. Pelo contrário, os comentários a respeito de Dilma Rousself só evidenciam que ainda há muito preconceito a ser vencido. Pois essas mesmas pessoas que a utilizam de embasamento anti-feminista duvidam da sua capacidade pelo simples fato dela ser mulher. Os comentários sobre a aparencia e do comportamento da presidenta, que fogem da regra da "feminilidade", por exemplo, nunca surgiram quando havia um homem no poder. 

Os primeiros movimentos feministas no Brasil surgiram no século XIX, reinvindicando principalmente o direito da cidadania, já que era o primeiro passo para que um verdadeiro combate contra o machismo começasse. Mas ao contrário do que os "saudosistas do antigo feminismo" pensam, existia já naquela época quem defendesse a emancipação total da mulher. A libertação de seu corpo e de sua alma. Essas eram rotuladas como "radicais demais". Hoje, há a falsa concepção de que essa independencia existe, mas a verdade é que o feminismo continua lutando pelo direito da liberdade feminina, intelectual e sexual - e estas continuam sendo "radicais".

O acesso das mulheres aos cargos mais altos e a equidade salarial é um desafio. Os homens, criadores dessa cultura e até mesmo mulheres, que são alienadas pelo machismo e acabam reproduzindo o comportamento, ainda duvidam que uma mulher possa exercer um papel tão bem ou melhor do que um homem. E a dificuldade ainda é acentuada pelo acúmulo de jornadas que uma mulher possui, pois atribui-se a ela as obrigações domésticas e maternas. Como se o homem não pudesse cuidar da casa ou dos filhos. Como se isso tirasse sua "virilidade". A divisão de responsabilidades entre os sexos faz falta e quem sai prejudicada nisso - como sempre - é a mulher.

Há ainda as mulheres que sofrem com um requinte muito maior de crueldade. Mulheres que além de serem inferiorizadas por serem mulheres, lidam com outras discriminações enraizadas na sociedade. Racismo, homofobia, transfobia, elitismo. Mulheres negras, lésbicas, transexuais, pobres. Essas mulheres, tão mulheres quanto as outras, se cansam de não terem suas pautas ouvidas. A luta delas é só delas, mas a obrigação de as acolhermos e nos descontruirmos para unificar a luta feminista é indiscutivelmente necessária.

O machismo fere, traumatiza, apunhala, desencoraja. O machismo mata. E isso acontece não apenas uma, duas, tres vezes. Acontece diariamente. O tempo inteiro se ouve notícias de mulheres expostas na internet com fotos e vídeos íntimos. A cada uma hora e meia, uma mulher é vítima da violencia doméstica. A cada doze segundos, uma mulher é estuprada. Já basta; a negação do feminismo é o ignorar dos fatos. Machismo existe sim e está com as mãos ensanguentadas.

Quem sabe quantas guerras mais Joana D'arc ajudaria a França a vencer se não tivesse seu corpo queimado? Não fosse o machismo, o que de novo as "bruxas" condenadas pela Santa Inquisição poderiam ter oferecido à história? Essas mulheres não tiveram a chance de viver. E as mulheres-número de hoje continuam não tendo. Continuam morrendo. E continuarão até que o mundo abra os olhos para a realidade.

Chega dessas vozes gritando, falando, sussurrando o que nós, mulheres, devemos fazer. Libertemo-nos dos padrões de beleza e de comportamento. Essas paredes já não intimidam a mim nem a Ivone mais. E não precisam intimidar mulher alguma. Quebremos essas paredes sem medo, com toda a força que conseguirmos. Somente assim, unidas, poderemos um dia, como sonhava a filósofa Simone de Beauvoir, tornar a liberdade nossa própria substancia.

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