28 de novembro de 2016

A infância que respira entre papéis e espelhos



Em menos de 40 dias, 2016 ganha um ponto final. Para alguns, é aliviante deixar ir um tempo que de tanta aflição, de tantos danos trazidos, pareceu ter sido dilatado. Para outros, as badaladas da meia noite serão o carimbo perfeito para um ano de concretizações e aprendizados, trazendo, ao final da contagem regressiva, a sensação de dever cumprido. Eu, particularmente, encaixo as minhas impressões em ambos. É um limbo do qual me orgulho, pois significa que todas as batalhas, as externas e as internas, não foram em vão; pelo contrário, trouxeram um amontoado de constatações.

As constatações trazidas são como pílulas tranquilizantes grandes e amargas - necessárias, porém incômodas -, cujos efeitos causados ecoam por um período indeterminado. Ao menos quando tudo é novo, desde a superfície da sua pele até a sua percepção de mundo, os efeitos são para a vida inteira - especialmente porque a vida mal começou. E por mais que nos avisem disso excessivamente, por mais que todas as nossas células estejam (secretamente) cientes, é difícil aceitar. Mas é essa a verdade maior: embora a gente queira muito, não há como adiar o momento de crescer, é preciso, mais cedo ou mais tarde, encarar as opções e marcar o gabarito. As escolhas são, inevitavelmente, parte crucial do que a gente chama de crescer.

Crescer, esse verbo que me intriga e me assusta por mais anos do que eu consigo contar. Oficialmente, esse medo veio à público aos meus 10 anos, de modo brando e particular, através de um pequeno texto meu publicado em um jornal, intitulado "Infância tem prazo de validade?". Nele, eu fiz uma espécie de reflexão a respeito do momento em que nos olhamos no espelho e percebemos que a imagem daquela criança inocente deixará de existir um dia, dando lugar a uma pessoa quase completamente estranha aos nossos olhos. As feridas no joelho, que pouco importavam quando escondidas sob um band-aid colorido, dão lugar às feridas da alma e o que antes era mágico, passa a ser banal. Andar de bicicleta, experimentar um sorvete diferente, deitar na grama... por mais que o gosto ainda seja açucarado, a sensação não chega nem perto de suas origens. É um resquício do que um dia já foi, mais nada.

Apesar de ser uma verdade simples, fácil de ser percebida mesmo antes de ser sentida, pois afinal, o tempo não mente, nem para, é complicado admitir a diferença entre o brilho de antes e o de agora por uma razão que eu, com meus 10 anos, não pude captar: a gente cresce e muda, de fato, mas por trás dessa nova pele, ainda habita a mesma criança que um dia se olhou no espelho e temeu que o tempo lhe roubasse. A criança está ali, escondida em algum lugar aquecido e seguro. E toda a estranheza que nós vemos vê diante de nós mesmos não se deve apenas às cascas que criamos quando nos machucamos ou às máscaras que surgiram devido à nossa necessidade de adaptação e aceitação. O principal motivo que nos leva a pensar que a criança desapareceu e nos deixou sozinhos na companhia de um ser estranho é a substituição da parte mais importante dos nossos corpos: os olhos.

Quando você abandona a zona de conforto, por vontade própria ou não, e passa a conhecer o mundo mais de perto, sem idealizações, com todas as imperfeições e injustiças, o mundo deixa de ser acolhedor. De repente, você descobre que o maior pacifista da história, aquele que clamava que você tinha de ser a mudança que quer no mundo, era tão racista quanto o seu vizinho. Você descobre que os vencedores da segunda guerra eram tão ruins quanto o maior vilão e que outras guerras derramam sangue debaixo do seu nariz diariamente. E então a pessoa em quem você mais se espelhava em vários níveis era rodeada de segredos e mentiras que machucaram mais gente do que você pode imaginar. Pouco a pouco, todos os seus heróis vão sendo desconstruídos, até vir à tona a conclusão de que mesmo você tem um lado sombrio. E é por toda essa ruindade humana que o mundo se torna menos leve, menos bonito, menos mágico. Fatalmente, os olhos mudam e jamais poderão voltar a ser como antes.

Assim, é mais do que visível a existência de um dilema paradoxal ao longo das nossas vidas, enquanto nós crescemos e tropeçamos: o passado e o presente, juntos no mesmo ser. No entanto, analisando os dois pedaços, encontramos tantas semelhanças que o paradoxo, apesar de trazer tantas indagações, nem parece tão grande. De um lado, a criança que escrevia à mão histórias de princesas independentes, que arrastava a melhor amiga até a rádio em pleno feriado pra um "teste musical", que fugia de declarações de qualquer coisa que soasse ligeiramente como amor e que esperava ansiosamente o nascer do sol do dia 25 de dezembro. Do outro, alguém que escreve histórias de personagens desajustadas e bem distantes da realeza, mas ainda independentes e fortes, que encontrou coragem e paixão suficientes pra cantar em palcos e passar 12 horas em pé enfrentando frio e calor pra um teste musical (verdadeiro dessa vez), que continua fugindo, mesmo que de um jeito menos bruto, dos próprios sentimentos e dos sentimentos alheios e que ainda acha o nascer do sol o momento mais bonito do dia, mas que não espera tão ansiosamente por ele no dia 25. Essas duas partes nossas, criadas em horas tão distintas das nossas vidas, carregam a mesma essência. É a mesma pessoa, só que carregando nas costas um mundo mais pesado à medida que o tempo passa.

É por tudo isso que o tempo inteiro nós sentimos que não nos encaixamos completamente e em todo fim de ano, existe uma demanda maior por respostas a respeito de quem nós somos e de como tornar a coexistência de todas as faces do nosso eu menos complicada. Sinceramente, até agora eu não encontrei nenhuma resposta satisfatória e eu duvido que um dia eu vá encontrar, mas ser um paradoxo é o único jeito de existir. O máximo que nós podemos fazer é parar de adiar ou empurrar as nossas escolhas para as outras pessoas; o destino tem de pertencer a nós mesmos, só. Nem a si mesmo o destino pertence, ele é fruto de cada detalhe de cada escolha, podendo mudar a qualquer instante, a qualquer desvio. Às vezes, temos de escolher de maneira sensata e em outras - eu diria que na maioria -, não é necessário usar a razão, o impulso basta. Como saber qual dos dois modos utilizar? Não faço a menor ideia e qualquer um que ousa dizer que sabe, na verdade não sabe de nada. É essa a graça: o momento de marcar o gabarito é sempre uma incerteza e o resultado, uma surpresa.

Além disso, é preciso simplesmente abraçar a nossa história sem deixar que ela nos defina, não fugindo de quem nós somos, nem nos conformando com os nossos defeitos ou com os do mundo, acreditando que o momento de marcar o gabarito é uma nova chance de recomeçar. E o momento de avaliar ou de fazer escolhas, o momento de se reinventar, pode ser qualquer momento, mas tudo bem usar a desculpa da meia noite. O ano é, afinal, só uma delimitação que nós inventamos pra sentir que estamos no controle do tempo, mas acaba definindo muita coisa. É graças a essa marcação do tempo que sabemos quando nossos antigos heróis existiram. Aqueles que o tempo matou diante dos nossos olhos, antes ou depois de mortos. E é também graças ao ano que podemos nos entender de um jeito mais organizado e ter ao menos a ilusão de que o fim dele traz consigo a caixa de Pandora ou a chave de ouro.

Um ano, ainda que traga todas as verdades que procuramos (em um universo paralelo, é claro), é apenas um ano. E as badaladas não são mágicas, mas se nós deixarmos, tudo que parecia ser capítulo pode fazer parte do prólogo e podemos ser autores e protagonistas das nossas próprias histórias. Apenas com caneta permanente, evidentemente, mas com uma infinidade de folhas ao nosso alcance.

Nada além da vida precisa ter prazo de validade; basta a gente se permitir.

2 comentários:

  1. Talvez uma das maiores crueldades em crescer seja o despertar da consciência e perceber que nossos heróis eram mais imaginários que reais. É um soco no estômago e em maior ou menor medida todos passamos por isso. E acredite, eu desmontei quando, assim como você, vi que meu espelho não era real. Mas hoje, aos 35 anos, sou capaz de te dizer que fiz as pazes comigo mesma e com o mundo (o perdão é um exercício diário). O amadurecer me fez perceber que todo ser humano é falho e que estamos neste mundo com o mesmo objetivo: evoluir. Por isso, tento ser o meu melhor a cada dia. Afinal, assim como um dia eu admirei alguém que me decepcionou, sei que existem olhos infantis e curiosos sobre mim. E espero nunca decepcioná-los (embora eu saiba que como ser humano estou passível de erros). Amo vc e como já disse, estou sempre aqui :) Ah, amei você voltar a escrever!

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    1. Sim, a gente passa um tempão se espelhando em uma fantasia, é um soco no estômago mesmo. Mas felizmente é um soco com o qual a gente consegue conviver, não é como se a gente pudesse fugir disso né kkkkksahikhufd penso desse jeito também, a gente tem de perdoar e corrigir as nossas falhas pra evoluir, mas nem sempre é fácil perdoar o mundo, né? Paciência...
      Cacá, você é uma pessoa incrível, acho que quem te admira - eu me incluo nisso -, sabe que você é passível de erros e mesmo assim continua te achando foda. Aliás, acho que admirar alguém depois que você desperta do seu mundo de idealizações requer que você admire alguém apesar de qualquer defeito, desde que a pessoa não seja daquela vibe conformista e estagnada que nega a evolução como objetivo.
      Amo você também <3 e amém que a pausa na escrita acabou mesmo kkkfoijsids tava sentindo saudade!

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