9 de fevereiro de 2017

Eu não sei trocar as cordas do meu violão


Do primeiro ao terceiro instrumento, dos conjuntos básicos aos bonitinhos com pontas felpudas, foi você quem trocou as cordas do meu violão. Parecia estar tão seguro de si apertando e afrouxando as tarraxas, comprimindo e esticando as cordas. Era prudente. Garantido. Mas não era essa a razão principal pra esse trabalho ter sido seu durante tanto tempo.
Eu te entregava o violão e o mi-si-sol-ré-lá-mi não porque você sabia executar a tarefa melhor do que eu. Você sabia, muito mais que eu e minhas mãos desajeitadas, e não era nem a sua praia. Mas não era isso. É que era bom ter mais um momento pra gente compartilhar. Algo a mais pra chamar de nosso. Assim como as mangas e as laranjas que você descascava e nós dividíamos. Era pouco, era pequeno, era simples. E era nosso.
Eu gostava de depender das suas mãos ásperas e habilidosas pra cuidar do meu violão. Era mais um jeito de você cuidar de mim. Era mais um laço entre a gente, mais um lugar onde eu era livre de responsabilidades. Não precisava esquentar a cabeça retirando, colocando e afinando as cordas com cuidado. Eu simplesmente não precisava porque era um problema seu. Mais uma de suas obrigações paternas.
Atribuí essa obrigação a você porque era como um contrato. E nas linhas desse documento implícito, dizia que você tinha pelo menos mais 10 anos prestando serviços pra mim, cumprindo sua tarefa de trocar as cordas do meu violão. Como eu era otimista, chegava a acreditar que eram 20 ou até 30 anos pela frente o que tínhamos. Seu coração não era dos melhores, mas eu confiava no marca-passo. A medicina moderna me prometeu um funcionário competente e presente.
Não me preocupava com o seu coração, nunca me preocupei, e no final das contas, eu estava certa da não-angústia. Talvez, se dependesse só dele, você teria sido um velho centenário. Seu marca-passo te levaria longe, bem longe, e esse longe te deixaria bem perto de mim. Te deixaria vivo. No entanto, eu me esquecia que tinha ali um corpo inteiro, com veias, órgãos e sistemas. E que bastava um forasteiro com más intenções para que todo o seu organismo entrasse gradativamente em colapso e seu corpo não fosse forte o suficiente e sua atividade cerebral cessasse e seu coração parasse de bater até que o marca-passo se tornasse obsoleto.
Desde então, eu fui cautelosa e não permiti que nenhuma corda arrebentasse (especialmente a maldita da mizinha). Assim, além de evitar o susto do instante, eu não preciso, obrigatoriamente, trocar as cordas. Quer dizer, eu sei que eu preciso. Li em algum lugar que o ideal é que elas sejam trocadas de seis em seis meses. Mas me arrisco a dizer que elas são as mesmas há mais de dois anos. Porque elas nunca arrebentaram e eu nunca senti que precisava aprender a trocá-las, então eu nunca aprendi. Nunca nem tentei.
Agora eu não sei trocar as cordas do meu violão, porque não me acostumei à sua ausência tal como me acostumei com o que era nosso. Eu me lembro disso todas as vezes em que olho pro meu violão mal cuidado no canto do meu quarto. Todas as vezes em que toco uma música e o som não é tão bom como imagino que poderia ser. Todas as vezes em que minha mente não consegue se desviar de você e do quanto eu gostaria que estivesse aqui. Todas as vezes em que odeio o futuro do pretérito com todas as minhas forças.
Você deveria estar aqui. Nós assinamos esse contrato imaginário com sangue, lembra? Deveria, poderia, ia, ia, ia.
Não, você não está aqui. Não no presente do indicativo. E não vai estar nunca mais. E é por isso que eu preciso trocar as cordas do meu violão. Eu preciso aprender as descascar mangas e laranjas direito. Eu preciso lidar com um mundo em que você não troca minhas cordas nem divide frutas comigo. Porque esse é o mundo em que eu vivo. Essa é a realidade.
O que foi nosso um dia agora precisa ser meu. Por mais que eu arrebente cordas, deixe as laranjas feias e machuque meus dedos no processo.
Já comecei pela manga. Demorei longuíssimos minutos e o resultado foi uma manga não muito simpática, mas ao menos tava deliciosa. Não tanto quanto a nossa manga, mas ela bem que se esforçou.
Um dia eu aprendo.

2 comentários:

  1. Muito lindo Ana Clara. O importante hoje é que você o guarda com muito amor em seu coração. Não esqueça nunca daquele que sempre a amou sem pedir nada em troca.
    Eu tenho muitas saudades do seu pai. O admirava muito. Parabéns!

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